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Ao ler aqui em baixo esta passagem de Natal do Evangelho (uma das que o João Távora nos deixa aqui, regularmente, num acto de uma certa coragem e de verdadeira liberdade de expressão) constato uma vez mais que, embora a minha fé deixe muitíssimo a desejar, não conheço nenhuma outra mensagem nem outro exemplo de vida tão sublimes como os de Jesus Cristo: "(...) um Menino recém-nascido, envolto em panos e deitado numa manjedoura". Simplicidade, humildade, insubmissão, coragem, grandeza interior num exterior sem afectações. E a reflexão que esta leitura me suscita lembra-me uma acesa e proveitosa conversa entre amigos, ainda não há muitas semanas. Dois desses amigos eram budistas convictos, os outros, católicos esclarecidos e mais ou menos praticantes. A discussão centrava-se nas comparações entre o Cristianismo e o Budismo como filosofias de vida, como orientação de conduta para os seus seguidores. Diziam os budistas que o Budismo não é exactamente uma religião e que, por isso mesmo, é, em teoria, compatível com a prática de outras religiões (incluindo a cristã). E que a busca incessante do aperfeiçoamento pessoal, ao longo de uma vida, é a melhor forma de conquistar a tal santidade de que falam os cristãos e de contribuir para um mundo melhor e mais pacífico. Diziam os católicos, pelo seu lado, que o Budismo obriga a uma espécie de reclusão espiritual que é impraticável no Ocidente e quase impossível nos dias que correm, a não ser em ambientes preservados de quase toda a agitação e solicitações normais da forma de viver ocidental, ao passo que o Cristianismo é aplicável em sociedade, e torna essa sociedade mais humana e fraterna.
Mas as diferenças da prática não são o mais importante, para mim. Há uma certa matriz comum que me agrada e tranquiliza, a mim que sou totalmente pelo ecumenismo. Assim como existem diferenças estruturais, evidentemente, das quais a menor não será certamente a crença na reencarnação. Mas é na essência de ambos - Budismo e Cristianismo - que eu vejo afinal a maior clivagem, e é nessa essência que a mensagem do segundo me parece de uma beleza e de um alcance incomparavelmente maiores. Por muita simpatia que eu tenha pelos preceitos budistas - e tenho, sobretudo pela ideia da conquista da serenidade para enfrentar os desafios dum mundo cada vez mais difícil de compreender - e mesmo reconhecendo que há em ambos a mesma exortação ao despojamento de bens e de hábitos que nos prendem ao que é material e nos afastam da espiritualidade (a distorção que os homens fizeram da mensagem de Cristo não a desvaloriza em nada, apenas a desmerece), a diferença fundamental está no objecto de atenção e na direcção do olhar: o Budismo convida-nos olhar para o interior de nós, a virarmo-nos "para dentro". O Cristianismo, pelo contrário, convida-nos a esquecermo-nos de nós próprios e a centrarmo-nos nos outros, ou seja, a virarmo-nos "para fora".
Se imaginarmos um mundo ideal em que esses preceitos fossem seguidos à regra por todos, teríamos bem visível essa diferença: num mundo budista, cada ser humano cuidaria da sua própria felicidade e não impediria ou ameaçaria a dos outros, que fariam o mesmo. Uma exigente espiral de auto-conhecimento e espiritualidade evoluiria naturalmente, a caminho da perfeição, e o bem-estar de cada um dependeria exclusivamente de si próprio; num mundo cristão, cada ser humano se preocuparia com os seus semelhantes e se esqueceria de si próprio, cuidando da felicidade e bem-estar dos que o rodeavam e sabendo, sem que tivesse de pedi-lo, que alguém faria o mesmo consigo.
Sendo ambas as visões de paz e harmonia, a segunda é francamente mais solidária e por isso a prefiro. Voltando ao princípio, repito que a minha fé deixa muito a desejar. Gostaria de preocupar-me muito mais com os outros do que comigo própria. Gostaria de aprofundar muito mais a minha espiritualidade. E gostaria de ter ainda aquela credulidade limpa de desconfianças que há nos olhos das crianças felizes, e que fui perdendo com o tempo. Estou a anos-luz de alcançar algum desses planos, e tenho plena consciência disso. Talvez um misto de Budismo e Cristianismo seja o segredo para a harmonia do mundo, não sei. Mas o supremo e dificílimo desafio de uma entrega incondicional, como aquela de que Cristo foi exemplo, constitui, para mim, um objectivo muito mais alto e belo do que a minha própria perfeição.