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Risco Contínuo

Estrada dos bravos, blog dos livres

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O Veto de Marcelo e a Hipocrisia da Ética Republicana: Um Ataque à Democracia Local

José Aníbal Marinho Gomes, 13.02.25

A propósito do veto presidencial à reposição das freguesias determinada por decreto -- subscrito por PSD, PS, BE, PCP, Livre e PAN, o meu Amigo e companheiro de ideias, Porfírio Pereira da Silva, escreveu hoje na sua página do Facebook, o seguinte: 

"Estamos na "República das Bananas". Falta de transparência e imparcialidade há, isso sim, na luta partidária pela CADEIRA DE BELÉM. O Memorando da Troika (Memorando de entendimento sobre condicionalismos específicos sobre política económica) era bem claro nas suas exigências, a propósito das medidas a adotar pelo governo para aumentar a eficiência e a relação custo-eficácia da administração pública: «3.43. Reorganizar a administração do governo local. Existem atualmente cerca de 308 municípios e 4.259 freguesias. Em Julho de 2012, o governo vai desenvolver um plano de consolidação para reorganizar e reduzir significativamente o número de tais entidades. O Governo vai implementar esse plano com base em acordo com o pessoal da CE e do FMI. Estas mudanças, que entrarão em vigor no início do próximo ciclo eleitoral local, vão melhorar o serviço, aumentar a eficiência e reduzir custos.» PORQUE NÃO TOCARAM NOS MUNICIPIOS? Talvez faça falta um pouco de cultura política nos políticos deste país. Atentem ao que escrevemos no nosso livro BALIZA TRÁGICA DE UM NAUFRÁGIO, editado em 2015: «...O professor universitário de Direito, Carlos Abreu Amorim, dado que, algumas vezes, concordavam com as suas bem fundamentadas e elaboradas argumentações, porque eram (em algumas circunstâncias) consonantes com os seus ideais democráticos, mas que os viria a dececionar ao tomar posições favoráveis à defesa das trapalhadas políticas de Miguel Relvas. (p. 136) [...] A nossa maior deceção presente vai no sentido de ele se permitir ao facilitismo – com que facilidade se tornou no “correio-mor” na defesa da licenciatura fantoche de Miguel Relvas – de se augurar em defesa da reorganização administrativa territorial, quando ao tempo do governo de Sócrates se vangloriava de “profeta”, permitindo-se o seguinte comentário, em artigo publicado no Diário de Notícias, em 2010: "Não há autarquias a mais em Portugal – em termos relativos, até temos o menor número de municípios da EU. O decreto de 11 de Julho de 1882 criou 785 municípios e 4086 juntas de paróquia (hoje são 4260 freguesias). Em 1836, Passos Manuel extingue 751 concelhos – passaram a ser 351 (hoje são 308 municípios). O número de municípios e freguesias tem-se mantido com uma constância impressionante. / Mas há um episódio que convirá relembrar aos governantes de hoje: a revolta da Janeirinha. Em 26 de Junho de 1867, foi publicada a Lei da Administração Civil que tentou extinguir 104 concelhos. No dia 1 de Janeiro de 1868 deu-se uma enorme manifestação espontânea de protesto no Porto (é daqui que vem o nome do matutino portuense) que alastrou para Braga, Coimbra e Lisboa. / O governo caiu e foi revogado o decreto da reforma administrativa. / Talvez fosse bom que este governo à beira do fim passasse uma vista de olhos pela história…"» (pp. 137-138). Recado dado, cambalhotas dadas na tão propalada "ética republicana". Fiquem bem!"

Presidente assina documento enquanto cidadãos pro

Como comentário ao seu texto escrevi o seguinte:

A recente decisão do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, de vetar a reposição das 302 freguesias extintas na famigerada "reforma Relvas" de 2013, revela mais uma vez os vícios de uma República onde os interesses políticos imediatos e as jogadas estratégicas partidárias se sobrepõem ao interesse nacional. O Presidente justifica o veto com a proximidade das eleições autárquicas e uma suposta falta de transparência. No entanto, a real falta de transparência reside na forma como, desde 2013, os sucessivos governos republicanos se esquivaram a corrigir uma reforma profundamente injusta e prejudicial para as populações locais.

Porfirio Silva, com razão, chamas a atenção para o contexto histórico e político desta questão. O Memorando da Troika foi taxativo na exigência de uma reorganização da administração local, mas o governo de então optou por cortar a direito, sacrificando as freguesias e poupando os municípios. Porquê? Porque as freguesias são a estrutura política mais próxima do povo, aquela que menos margem dá para os jogos de poder e para as redes de influência partidárias. Não é por acaso que os municípios foram deixados intocados – são máquinas mais poderosas, com maior capacidade de influência política e económica, e, portanto, intocáveis pelos interesses que realmente comandam os destinos do país.

Este episódio só vem confirmar o que há muito se sabe: a República Portuguesa, que tanto se vangloria de valores democráticos e da chamada "ética republicana", não hesita em atropelar esses mesmos princípios quando lhe convém. Ética só há uma – não é republicana nem monárquica. É ética, ponto. Não há duas varas para medir o que é justo ou não, dependendo de conveniências políticas ou de calculismos eleitorais. A verdade é que esta "ética republicana" tantas vezes apregoada não passa de um conceito elástico, moldado ao sabor dos interesses de quem ocupa a cadeira do poder.

E não nos esqueçamos da hipocrisia daqueles que defenderam esta reforma em 2013, mas que antes dela, quando lhes convinha, diziam o contrário. O trecho citado no livro "Baliza Trágica de um Naufrágio" denuncia bem essa contradição: enquanto antes havia quem afirmasse que "não há autarquias a mais em Portugal", depois, num volte-face conveniente, passaram a defender a suposta necessidade de reduzir o número de freguesias. Cambalhotas políticas como essa são o verdadeiro espelho da "ética republicana" – uma ética de conveniência, onde os princípios são descartáveis e onde a coerência é sacrificada no altar dos interesses partidários.

Marcelo Rebelo de Sousa, que tantas vezes se apresenta como o defensor do equilíbrio e do respeito pelas instituições democráticas, neste caso preferiu alinhar-se com essa visão oportunista e centralizadora, em detrimento da verdadeira democracia local. O argumento de que a reposição das freguesias prejudicaria as autárquicas é de um absurdo total: se há injustiças, estas devem ser corrigidas o mais depressa possível, independentemente do calendário eleitoral. Adiar uma correção justa apenas para manter uma suposta estabilidade artificial não é mais do que perpetuar a injustiça.

O municipalismo é um dos pilares fundamentais de uma governação realmente democrática e eficaz. Quem conhece a história de Portugal sabe que foi na autonomia dos municípios que sempre residiu a verdadeira força da governação local, muito antes da imposição do modelo centralizador republicano. A destruição arbitrária de centenas de freguesias em 2013 foi um golpe contra essa autonomia e um atentado contra as populações locais, que perderam proximidade com os seus órgãos de poder e, consequentemente, perderam voz. A reposição das freguesias não é uma questão de oportunismo político – é uma questão de justiça.

A República tem um longo histórico de decisões administrativas que ignoram o país real e servem apenas os interesses dos partidos que se revezam no poder. Esta é apenas mais uma prova de que, para os republicanos, a "ética" e a "transparência" são meras ferramentas de retórica, utilizadas apenas quando lhes são convenientes. Se o Presidente da República tivesse real preocupação com a justiça e a equidade, teria promulgado a reposição das freguesias sem hesitação.

Ficamos assim, mais uma vez, reféns das lógicas de poder centralista e de um sistema que privilegia os cálculos políticos em detrimento da democracia local. A verdadeira ética – que não é republicana nem monárquica, mas apenas ética – exige que se corrijam os erros cometidos contra as populações. A decisão de Marcelo Rebelo de Sousa vai precisamente na direção oposta, perpectuando uma injustiça que já dura há demasiado tempo.