Nevoeiro
Numa sala gelada do belíssimo Palácio da Independência, ali ao Rossio, com cadeiras de plástico cedidas pela Câmara Municipal de Lisboa (de tal maneira velhas e em mau estado que várias se partiram, fazendo cair no chão, com estrondo, alguns dos assistentes mais volumosos), assisti ontem ao lançamento de um CD curioso: "Mensagem - À Beira-Mágoa", de José Campos e Sousa.
São 18 poemas da Mensagem de Fernando Pessoa, musicados e cantados por um bardo injustamente esquecido da nossa praça, cuja voz densa, bem colocada e cheia de belas ressonâncias ombreia sem vergonha com as dos grandes cantores franceses dos anos 60, Brassens, Ferré ou Reggiani. Foi bom ouvi-lo, nestes tempos de míngua identitária, sobriamente acompanhado pelo som dolente da sua própria viola e por aquela magnífica intensidade que há nas palavras de um Pessoa messiânico e visionário, apelando ao que de mais nobre temos, como povo.
De todos os poemas cantados no disco, destaco aqui Nevoeiro (o último poema da Mensagem), que me impressiona particularmente pela triste e arrepiante actualidade. Não sou de fatalismos nem de imobilismos saudosistas, mas é impossível negar a evidência: é assim que estamos de novo, ou talvez... sempre. Pessoa tem aquele raro dom de pôr-nos à frente um espelho, com implacável e inescapável clareza. Gostaria de acreditar que "é a Hora".
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer.
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a hora.