Crónicas da Nau Catrineta
Parte 6
Valham-nos as mitocôndrias
Portugal dos pequeninos sempre me fascinou enquanto criança. Viver num mundo à minha escala parecia fascinante… As casinhas, as janelas tudo feito ao meu tamanho. Era perfeito. Sonhava viver assim.
Mas à medida que fui crescendo percebi que crescia também a minha visão e a minha compreensão do que me rodeava. E o Portugal dos Pequeninos deixou de me servir enquanto cenário idílico de aventuras.
Ao contrário de mim, há pessoas que ainda vivem o Portugal dos Pequeninos e que me trazem à memória aquela imagem da Alice no País das Maravilhas, quando come o biscoito e lhe saem as pernas pelas portas, os braços pelas janelas e a cabeça pela chaminé: recusam-se a acreditar na grandeza de um povo e de uma nação. Serve-lhes o pouco que têm, por muito desconfortável que seja. E se não têm mais, a culpa é dos outros.
Alguém me disse, e bem, que a culpa foi de D. Sebastião (coitado, tem as costas largas).
“Sabe Sónia…” diziam-me “D. Sebastião levou com ele os melhores homens. Os que ficaram foram aqueles que ou eram velhos e doentes, aqueles que para fugir à guerra, se fizeram de coxos, de cegos, de zarolhos ou tiveram a esperteza de se esconder na adega. Com D. Sebastião morreram os bons-homens, entende? A gana de Portugal morreu com eles…”
Atónita, fiquei alguns momentos embriagada em perplexidade.
Então não é que é verdade?! Foi tudo embora?!!
Mas o meu espírito crítico, científico emergiu da evidência primária e lembrei-me: Mas as mulheres não! As mulheres não foram. As mulheres não se perderam no nevoeiro! Espera lá!
É que existe um tipo de ADN que só herdamos das mães. O ADN Mitocôndrial. O espermatozoide usa as mitocôndrias para produzir energia e liberta-se delas, juntamente com a cauda, aquando da fecundação.
Uff!
Podemos ser descendentes de coxos, manetas, covardes mentirosos e preguiçosos, daqueles que se atiram para o chão a gritar penalti. Mas somos também todos filhos da nossa mãe, essa mulher de cabelos escuros de arrecadas nas orelhas, que nas noites em que o vento assobiava e o mar rugia, nos ensinou a vencer Adamastores à pazada (e uns quantos espanhóis). Das mulheres que ainda amassam filhós, refogam no azeite e teimam em fazer-nos comer a última colher de sopa. Que são as primeiras a acordar e as últimas a dormir. Que nunca deixam nada por dizer nem por fazer. As nossas mães não nos criaram para isto! Para olharmos para o lado e fingirmos que não vemos! Para ignorarmos 1000 anos de história de tantas outras mulheres anónimas, que pariram Reis mas também camponeses, cientistas, pensadores e artesãos!
Valham-nos as mitocôndrias e o colo das nossas mães e deixemo-nos de desculpas para justificar a nossa inércia.
Arregacem as mangas, amarem o cabelo, desapertem a gravata ou calcem um salto de 15cm, o nosso país está à beira de uma crise bem pior que a económica: uma crise de valores, de carácter e de princípios.
Valham-nos as mães de Portugal.
Valham-nos as mitocôndrias.